Especialistas desconstroem propaganda do MEC sobre reforma do ensino médio



Especialistas desconstroem propaganda do MEC sobre reforma do ensino médio

Estudiosos em políticas públicas no setor rebatem argumentos usados pelo Ministério da Educação

O Ministério da Educação está veiculando uma propaganda sobre a reforma do ensino médio. Na peça, de apenas um minuto, um estudante chama a atenção da classe perguntando se todos conhecem “o novo ensino médio” baseado “nas experiências de vários países” e que “vai deixar o aprendizado muito mais estimulante e compatível com a realidade dos jovens de hoje”. Depois, segue falando da flexibilidade do currículo, apresentando que, além do conteúdo obrigatório, que será definido pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o secundarista vai “ter liberdade” de escolher uma entre quatro áreas de conhecimento para se aprofundar, salientando que os colegas que quiserem se preparar para mercado de trabalho, terão a opção de cursar “uma formação técnica profissional, com aulas teóricas e práticas”.

No final do comercial, o ator vira para câmera e convida o telespectador a participar das discussões no site do MEC.

A fim de avaliar os pontos positivos divulgados no comercial, sobre a Medida Provisória 746/2016 que institui as alterações no ensino médio, o jornal GGN entrevistou dois especialistas em educação pública, que há anos acompanham o debate em nível federal e estadual: a livre docente e coordenadora do curso de pedagogia da Unicamp, Débora Cristina Jeffrey e o coordenador do núcleo de juventude do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), Wagner Santos.

A professora Débora chama atenção que a propaganda, em si, demostra que o governo deseja “acalmar um pouco os ânimos”. Em todo o país centenas escolas foram ocupadas por secundaristas que protestam contra a reforma do ensino médio, e também contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55, antiga 241, que congela os gastos sociais do governo federal por vinte anos, trazendo consequências direitas no financiamento da educação no país. Além dos estudantes, boa parte da comunidade acadêmica não concorda com as mudanças na educação impostas pela gestão Temer. Entenda a seguir os porquês.

Replicar experiência de outros países


Na propaganda, no momento em que o estudante diz que o “novo ensino médio” foi baseado na experiência de outros países, aparece na lousa os nomes Coreia do Sul, França, Inglaterra, Portugal e Austrália, nações que se destacam no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, na sigla em inglês). Parece positivo, então, essa tentativa de imitar essas nações, certo? Errado, os pesquisadores avaliam que o governo federal falhou ao deixar de fora anos de debates promovidos pela comunidade acadêmica brasileira em conselhos abertos pelo próprio poder público.

“Todos esses países que eles citam como modelo de fato são modelos mesmo, mas aconteceram mediante amplo debate com todos os setores envolvidos. Portanto não é apenas uma Medida Provisória que vai garantir o sucesso desse programa. Segundo, por tratar-se de educação, exige uma articulação da sociedade, dos pesquisadores. Muita gente já vem há muito tempo discutindo e pesquisando alternativas para o ensino médio no país. E, por último, a sociedade civil precisa participar desse debate. É uma reforma que envolve avanços, alternativas e perspectivas para juventude”, avaliou Wagner Santos.

“As experiências internacionais estão aí, como princípios ou como modelos que são particulares a um contexto histórico, político e educacional muito distinto do nosso. Então a transplantação, a adequação, ou a mudança do sistema educacional brasileiro com base em outros países eu acho que, por si só, ocasionaria uma série de problemas. Até porque nós já temos vários estudos de grupos de pesquisa nacionais, dissertações, teses que certamente já contribuiriam com esse levantamento que propiciaria uma adequação ou uma reavaliação do próprio ensino médio e, em especial, da educação básica”, pondera Cristina Jeffrey.

A docente também critica o fato do governo impor a reforma por Media Provisória, desconsiderando mais de uma década de debates para a construção de um sistema educacional mais eficiente, acrescentando como negativo o fato da equipe Temer não entender o ensino como algo integrado.

“A partir do momento em que se institui, via Medida Provisória, sem essa participação de todos os atores educacionais envolvidos, sem que se coloque em analise essas proposições nas instâncias de representação, você desconsidera toda uma construção da política educacional brasileira, apesar de todos os equívocos, de todos os resultados que se obtiveram, mas é colocar em xeque a construção de uma proposição de política de educação básica. Porque a questão não é só intervir no ensino médio, o que você altera ou modifica em uma etapa da educação básica tem um efeito nas demais”.

A flexibilização do currículo


Hoje o currículo acadêmico no ensino médio apresenta 13 disciplinas obrigatórias. No novo programa, as matérias artes, educação física, sociologia e filosofia passam a ser opcionais, e o estudante poderá escolher uma entre quatro áreas de conhecimento: linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas. Além dessas áreas ele poderá optar por fazer junto ou separadamente um ensino técnico profissionalizante, a partir da metade do ensino médio.

Santos e Cristina Jeffrey destacam que não existe objeção nenhuma a flexibilização do currículo, a problema, novamente, é a forma como a política está sendo aplicada, podendo comprometer ainda mais a qualidade do ensino público e aprofundar as desigualdades educacionais.

Santos vai além, considerando que o problema do ensino brasileiro não está na quantidade de matérias que os alunos precisam cursar, mas sim na falta de estrutura das escolas, destacando que o próprio governo já admitiu que nem todas as escolas vão poder oferecer todas as opções de escolha para seus alunos, isso levará a divisão de especialidades por colégios, aumentando a necessidade de deslocamento dos jovens e a um aumento de concorrência para entrar em alguns colégios, em detrimento de outros.

“Passa-se a ideia de que o jovem monte seu currículo, passe a escolher. Para que você escolha, tem que ter um cardápio e isso não está garantido. A gente sabe que as desigualdades regionais possibilitam ou não possibilitam oportunidades. Sociologia, filosofia, artes… isso com certeza são instrumentais que os jovens utilizam para produzir seu espaço, suas relações de corpo, a sua relação intelectual. Então são soluções aparentemente bacanas, porque parece propor um cardápio de possibilidades, quando na verdade você não tem muita possibilidade de escolha”. Concluindo em seguida:

“Territórios com maior capacidade de articulação, com maior oferta de uma rede de possibilidades pode garantir [todas as opções], é o que se faz hoje com a educação privada, mas aqueles territórios onde você não tem rede articulada, onde não tem serviços organizados, obviamente todas as opções não vão chegar”.

Cristina acrescenta que a Medida Provisória não deixa claro qual será o modelo pedagógico que irá orientar a nova dinâmica, acrescentando que a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que define e regulariza a educação em todo o país com base na Constituição, e que é resultado de um amplo debate na sociedade, já garante princípios usados na MP. Em outras palavras, não haveria a necessidade de uma Medida Provisória para melhorar o ensino público.
“A MP como um todo é um grande equívoco, porque é você querer a partir da força da lei que as coisas passem a funcionar de uma forma muito diferente. Então acho que, primeiro, envolve uma análise da concepção do ensino médio, segundo uma definição muito clara de quais seriam esses conteúdos e de orientação pedagógica que predomina: nós continuaremos baseando ou pautando o sistema ainda num modelo tradicional, conteudista? Numa proposta interdisciplinar? Numa proposta transdisciplinar? Tudo isso tem que ser levado em consideração. Então não é somente dizer que uma flexibilização via aprovação de uma Base Nacional Curricular Comum vai fazer com que, tornando obrigatória algumas disciplinas e tornando outras opcionais, vá se resolver o problema, porque na nossa escola pública brasileira ainda temos toda essa herança conteudista. É claro que temos experiências muito interessantes, interdisciplinares, por projetos e resolução de problemas, a nossa Lei de Diretrizes e Bases é favorável nesse sentido”.

Aprendizado mais estimulante  – Na propaganda vende-se a ideia de que o ensino médio se tornará mais atraente para os jovens a partir da flexibilização do currículo. Hoje um dos grandes desafios nacionais no campo da educação é justamente tornar o sistema de ensino mais atraente combatendo a evasão escolar. Esse, inclusive, tem sido um dos argumentos do MEC na defesa da MP. Atualmente, apenas 38% dos jovens na faixa etária entre 18 e 24 anos terminam o ensino médio no Brasil, sendo que 1,3 milhão de jovens entre 15 e 17 anos abandonaram a escola.  A título de comparação, nos Estados Unidos, a proporção de jovens entre 18 e 24 anos o ‘high school’ completo chega a 89%.

Entretanto, apostar na flexibilização como única forma de combater a evasão escolar é um erro, considera Cristina. “Não acho que [a MP] vai combater a evasão escolar, acho que, pelo contrário, se a gente pensar na conjuntura econômica que nós estamos, muitos jovens exatamente da faixa etária de 15 a 17 anos estão no mercado informal. Então quando você propõe essa expansão do ensino médio integral, quantos estudantes terão essa condição? E como fica a questão da oferta da educação noturna, que foi uma garantia da Constituição de 88 e da LDB? [Com a MP] você vai restringindo e, certamente, essa flexibilidade integrada a um sistema nacional de avaliação vai levar a uma seleção dos tipos de escolas para os tipos de aluno, a exemplo das experiências internacionais”, avaliou Cristina acompanhando as ponderações de Santos.

Segundo dados do próprio censo escolar do MEC, um em cada três alunos do ensino médio estuda à noite. No Estado de São Paulo, por exemplo, 36% das matrículas são no período noturno. “Se você ler o texto [da MP] ele não faz menção nenhuma ao ensino médio noturno e sim ao ensino médio integral, e também não diz que nesse ensino médio integral esses alunos receberão algum tipo de auxílio ou bolsa, por exemplo de permanência”, completa a docente, lembrando que as classes mais baixas é que frequentam as turmas abertas à noite.

Wagner Santos ressalta outro dado interessante, que a evasão é consequência de uma estrutura de ensino anterior ao fundamental: “A reprovação e abandono não acontece só no ensino médio, já acontece nos anos finais do ensino fundamental, que é uma margem nacional de 12% entre reprovação e evasão. São Paulo, tem uma média de 12,9% de reprovação e 6% de abandono, ao ano. Então já tem um funil na saída do ensino fundamental para o ensino médio”.

O coordenador do núcleo de juventude do Cenpec alerta também que o aumento de escolas em tempo integral pode sim aprofundar as desigualdades sociais, destacando que dados preliminares de um estudo que está sendo realizado dentro do Cenpec, comparando o sistema educacional em quatro estados, mostram que as escolas com educação em tempo integral são ocupadas predominantemente por jovens com maior poder aquisitivo.
Santos reconhece que o modelo de ensino atual realmente não dialoga com a cultura juvenil posta hoje. Entretanto, não aposta que a MP irá solucionar essa questão que tem uma resposta muito mais ampla do que o texto apresentado pelo governo peemedebista.
“Precisamos trabalhar a ideia de que as propostas pedagógicas contemplem autoria, protagonismo e circulação desses jovens na cidade e em seu território. Que ele incorpore as coisas do seu dia a dia, dos seus desejos, do seu projeto de vida no processo curricular e, o mais importante, também a valorização da carreira docente, que é salário. Tudo isso aí é o ensino médio. Não se resolve o problema, apenas, de você isolar o grupo, colocar 7 horas por dia [dentro de sala de aula], se você não enfrentar todas essas questões que estamos conversando”.

A “tentativa” de democratizar as discussões  – Depois de impor uma reforma por Medida Provisória, o MEC abriu um fórum de discussões no site oficial, chamando a população para colaborar com a reforma e, ainda, salientando na propaganda que a grade será baseada na BNCC, ainda em discussão.

Isso não significa, na avaliação da Cristina que a reforma avança para um caráter democrático. “Ela é totalmente contraditória considerando todas as manifestações que ocorreram, as ocupações [de escolas por secundaristas] desde que essa Medida Provisória vem sido instituída. Dá para se entender que a propaganda, de uma certa forma, é para acalmar um pouco os ânimos e apresentar publicamente [a reforma] para aqueles que desconhecem o que envolve a medida provisória ou o teor do texto apontando, portanto, essa possibilidade de diálogo ou de participação. Fato que não vem ocorrendo. Se a gente analisar a propaganda é muita curta, mas ela vem com a fala de um único estudante, como se os demais estivessem recebendo toda essa informação que um estudante, legitimamente, consegue passar como a melhor opção para os demais”.

Logo, a propaganda da equipe Temer procura maquiar um debate muito mais complexo. A coordenadora de pedagogia da Unicamp alerta, por exemplo, que o texto da MP centraliza as discussões educacionais no Ministério da Educação, prejudicando diretamente a autonomia dos Estados.

“É um retrocesso na nossa história da educação [a centralidade do MEC] em determinar políticas que devem ser seguidas por todos. O Ministério da Educação é um coordenador, mas a MP desrespeita qualquer tipo de proposição do pacto federativo e desconsidera a autonomia que os entes federados tem no Brasil e, em específico, no tocante à educação, à constituição dos sistemas educacionais, então é como se tivéssemos retrocedendo em períodos que a gente não gosta muito de lembrar, de ditaduras, onde a proposição da União tem validade sem qualquer tipo de diálogo, questionamento ou participação dos outros entes federados. A questão é muito séria, porque isso abre um precedente para reformas no ensino fundamental e a perda também dessa autonomia dos municípios, que foram protagonistas nas políticas nas últimas décadas”.

O que o governo não fala na propaganda – Do ponto de vista do investimento, os professores analisam que a política de Temer carece de sustentação. O governo afirma que disponibilizará repasses aos estados em um prazo de quatro anos para a ampliação do ensino médio integral nos moldes da MP, mas paralelo a isso propôs no Congresso a PEC 55 (antes 241) que congelará os investimentos primários – incluindo na educação – por 20 anos.

“É uma política que tem um início, um meio e um fim, e se a PEC 241 afetivamente for aprovada, você restringe mais ainda esse ciclo, porque na própria MP diz que o Ministro da Educação tem autonomia para dizer que ‘se houver’ orçamento disponível esse repasse será feito aos Estados e Distrito Federal”.

Já Wagner Santos considera problemática a escala de implementação das escolas em tempo integral colocadas no texto. O governo afirma que irá ampliar a carga horária de, aproximadamente, com 250 mil jovens em um prazo de 48 meses. “Se você considerar o volume e tamanho dos jovens que participam do ensino médio, é uma intervenção muito pequena”, completa. Segundo dados do Censo da Escola Básica de 2015, divulgados pelo MEC neste ano, o ensino médio brasileiro atende 8,07 milhões de jovens.

Santos segue afirmando que mudanças positivas nessa faixa educacional poderiam ser feitas sem uma MP. “Essas são discussões que estão há muito tempo no Congresso, na sociedade, em instituições do Terceiro Setor”, ponderando que a recente prorrogação solicitada pelo governo para estender as discussões da MP no Congresso até março de 2017 reflete mais ainda a “forma açodada” no modo dessa gestão abordar um tema central para o desenvolvimento do país.

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